Pessoas com HIV tiveram covid grave mais jovens que a média geral, relata pesquisadora da FMVZ

Pessoas com HIV tiveram covid grave mais jovens que a média geral

Perfil de casos graves de covid em pacientes com HIV e sars-cov-2 mostrou ainda que idade e etnia não branca são fatores de risco para infecção pelos dois vírus

Jornal da USP 08/11/2024
Texto: Beatriz La Corte*
Arte: Joyce Tenório*

Idade avançada e etnia não-branca são fatores de risco para casos de coinfecção entre HIV e sars-cov-2, aponta estudo publicado nesta sexta-feira (08). A pesquisa da USP com outras instituições notou também que a idade média da pessoa com os dois vírus que apresentou um quadro de covid grave foi de 49,7 anos, enquanto a média geral estimada, considerada para efeitos de políticas públicas, é maior que 60 anos. Isso sugere um envelhecimento precoce das pessoas com HIV.

O estudo foi conduzido pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP com apoio técnico de pesquisadores do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz.

A pesquisa reconheceu 36.746 casos de coinfecção entre HIV e sars-cov-2 no Brasil, em 2020. Destes, 4.502 (mais de 12%) evoluíram para quadros graves de covid-19. Os principais fatores comuns identificados nos casos mais severos foram: idade avançada, etnia não-branca, ausência de terapia antirretroviral (Tarv), contagem de células CD4+ (tipo de célula de defesa) abaixo de 200/mm³, carga viral detectável do HIV e comorbidades adicionais, como doenças cardíacas e diabetes.

Flavia Alvarenga, doutora em epidemiologia e coautora do artigo, comenta que a investigação surgiu devido à necessidade de compreender como a coinfecção entre HIV e covid-19 impacta pacientes brasileiros. “Em 2020, a rápida disseminação do sars-cov-2 evidenciou a vulnerabilidade de pessoas com HIV, especialmente aquelas com imunossupressão [baixa na imunidade] significativa”, explica a pesquisadora. Para ela, era preciso descobrir o perfil clínico, sociodemográfico e epidemiológico desses casos, além de identificar os fatores de risco para os quadros graves de covid-19 entre pessoas vivendo com HIV.

Na amostra dos pacientes coinfectados com casos não graves da covid, 46% eram indivíduos brancos; enquanto nas amostras de quadros severos da doença, o percentual decresceu para 33%. O estudo também revelou que, apesar de 30% dos pacientes ter mais de nove anos de escolaridade, no grupo dos casos severos, apena 18% tinham completado essa etapa educacional.

Entre as descobertas do estudo, Flavia destaca que uma das mais surpreendentes foi a média das idades que, entre os casos graves, ficou abaixo dos 60 anos. No Brasil, em um recorte etário, apenas idosos fazem parte do grupo de risco para as complicações da covid-19. O estudo aponta que a idade média do indivíduo coinfectado em quadro grave é de 49,7 anos. Ela explica que isso sugere um envelhecimento precoce dos indivíduos portadores de HIV.

Flavia Alvarenga – Foto: Currículo Lattes

Esse processo pode estar associado ao HIV e ao tratamento prolongado com antirretrovirais, fatores que aceleram danos imunológicos e metabólicos. “A população com HIV tem um envelhecimento precoce e esse fator deve ser considerado nas políticas públicas para os idosos”, afirma a pesquisadora.

"Estes achados ressaltam a necessidade de políticas públicas que priorizem o diagnóstico precoce e o acesso contínuo ao tratamento do HIV, especialmente entre grupos étnicos minoritários." -Flavia Alvarenga

 

Método de combinação de dados

A partir da combinação de informações presentes em três bancos de dados, os pesquisadores identificaram quais casos de coinfecção resultaram em quadros leves e moderados da covid-19, e quais avançaram para quadros graves.

As pessoas com HIV foram apontadas pelo banco HIV/aids do Ministério da Saúde. Para os casos de covid-19, os pesquisadores utilizaram o e-SUS Notifica (quadros leves e moderados da doença) e o SIVEP-GRIPE (quadros graves). O estudo usou dois modelos de integração de dados para identificar os casos de coinfecção: os métodos determinístico e probabilístico.

O primeiro associa apenas dados com informações únicas e consistentes, como o CPF, e garante uma correspondência exata entre registros. Já o segundo, faz uma associação entre registros com base em semelhanças em campos como nome, data de nascimento e nome da mãe, permitindo identificar registros que podem variar ligeiramente devido a erros de digitação ou preenchimento inconsistente.

NomeData de NascimentoNome da mãe
Eduardo Pereira Silva26/08/1936Maria Pereira Silva
Dudu Pereira Silva26/08/1936Maria Pereira Silva
Edu Pereira Silva26/08/1936Maria Pereira Silva
Eduardo Pereira Silva26/08/1936
Modelo determinístico identifica quatro indivíduos diferentes e não associa seus dados. Modelo probabilístico avalia a probabilidade de ser o mesmo indivíduo e associa seus dados – Tabela do Jornal da USP com dados extraídos do artigo

Em termos simples, o método probabilístico funciona como uma busca inteligente que tolera pequenas variações, apesar de, possivelmente, superestimar os dados. No método determinístico, o requisito de uma “chave” exata garante precisão mínima, mas pode sujeitar o estudo a uma subnotificação de casos.

O cuidado dos pesquisadores com os dados é fundamental pois, no Brasil, há frequentes lacunas e inconsistência no preenchimento de dados, além de uma fragmentação do sistema de informações de saúde. A pesquisadora explica que a combinação dos dois métodos reduz a perda de informações e aprimora a precisão dos dados. “Diversos estudos e órgãos, incluindo o Ministério da Saúde, utilizam esse recurso de ‘linkagem’ há mais de uma década”, diz Flavia. A prática é aplicada, por exemplo, na elaboração do boletim epidemiológico do HIV/aids e no monitoramento clínico dos casos de HIV.

Para a análise da associação entre variáveis, os pesquisadores utilizaram o Teste Qui-Quadrado de Pearson, o Teste T de Student e modelos de regressão logística. A pesquisadora aponta que esses instrumentos matemáticos foram essenciais para ajustar fatores de risco para casos severos da covid-19 (idade, carga viral de HIV e ausência de terapia antirretroviral). Essa análise confirmou gravidade maior em pacientes com imunossupressão avançada e comorbidades associadas.

"Estes dados fornecem uma base para o desenvolvimento de políticas que atendam minorias étnicas e outros grupos em situação de maior risco, melhorando a equidade e eficácia da saúde pública." - Flávia Alvarenga

A pesquisa não para

Com a conclusão deste estudo, o grupo de pesquisadores já está dando os primeiros passos para uma próxima investigação. O novo objetivo é comparar os quadros graves da covid-19 entre pessoas com e sem HIV. A equipe também verifica a viabilidade de estudar os efeitos da vacina contra a covid-19 em pessoas afetadas pela aids. “Esses dados podem ser valiosos para orientar novas políticas e protocolos clínicos para pessoas com HIV no futuro”, explica Flavia.

Mais informações: flaviakap@gmail.com