Bem-estar Animal – um relato pessoal de sua evolução no Brasil

Fonte: Portal Aucani USP – 5 de julho/2021

Por Adroaldo José Zanella, do Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Saúde Animal (VPS) 

Comentários de Fred Arruda, embaixador do Brasil no Reino Unido, 

O Brasil caminha para se tornar um líder mundial no bem-estar dos animais de criação. Ela está avançando rapidamente na compreensão das questões relacionadas aos animais de estimação e está avançando na proteção da vida selvagem. É uma causa cara ao Brasil e ao povo brasileiro. Na verdade, o Brasil pode muito bem ser o único país que consagra a proibição da crueldade para com os animais em sua constituição. Pesquisas recentes mostram que os consumidores brasileiros privilegiam sistemas que valorizam o bem-estar animal e a sustentabilidade.

Em minha trajetória profissional, tive a oportunidade de testemunhar o avanço do bem-estar animal em diversos países e universidades, e tenho muito orgulho de estar participando da evolução da pecuária brasileira em direção a uma abordagem de Um Bem-Estar.

Foi durante meu doutorado na Universidade de Cambridge, e sob a orientação do professor Donald Broom, que apresentei, no Congresso Mundial de Medicina Veterinária do Rio de Janeiro em 1991, os resultados (não publicados na época) de pesquisas sobre alterações endógenas opioides no cérebro de porcas alojadas em gaiolas, mostrando que tais mudanças estão associadas a comportamentos repetitivos; esse sistema seria proibido no Reino Unido em 1999 e na Europa em 2013. Aquele evento me abriu as portas da Escola de Veterinária de Munique, na Ludwig Maximilians Universität, da qual organizei o primeiro evento latino-americano sobre bem-estar animal, em 1994 , em Porto Alegre, Brasil. Na ocasião, abordamos temas como transporte e abate de animais.

Em 1996, ingressei na Michigan State University, onde passei dez anos. Lá criei um programa de bem-estar animal que viria a ser considerado um dos mais influentes do mundo. Então, em 2006, ao ingressar na Escola Norueguesa de Veterinária, hoje Universidade Norueguesa de Ciências da Vida, fui contatado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que me pediu para desenvolver um treinamento teórico e prático sobre a abate humanitário de animais para seus veterinários oficiais que atuam na fiscalização de produtos de origem animal. O treinamento, em colaboração com a Universidade de Passo Fundo, Brasil, contou com a presença de Temple Grandin. Cientista americana reconhecida por seu trabalho em bem-estar animal, Grandin deixou o Brasil com uma impressão positiva dos frigoríficos que visitou em nosso país. Esse programa de capacitação se tornaria um marco na atuação do MAPA nessa área. Da Noruega, pude continuar ajudando no desenvolvimento do bem-estar animal no Brasil, recebendo alunos e pesquisadores, e mantendo contato próximo com instituições brasileiras.

Como professor titular e catedrático de saúde e bem-estar animal no Rural College da Escócia em Edimburgo, coordenei o segundo maior projeto de bem-estar animal do mundo. Financiado pela União Europeia na ordem de seis milhões de euros, o projeto AWIN incluiu alguns eventos no Brasil. O primeiro foi em Belo Horizonte, onde nos propusemos a realizar a criação de uma escola global de bem-estar animal, que se tornasse o Animal Welfare Science Hub, um portal global de comunicação na área de bem-estar animal.

Cada nova visita ao Brasil me dava a certeza de que a bússola do bem-estar animal e da sustentabilidade na produção de alimentos estava apontando para o nosso país. Os desafios e oportunidades excepcionais para transformar a pecuária brasileira em modelo de bem-estar animal me atraíram à Universidade de São Paulo (USP). Lá, a partir de 2013, após vinte e seis anos no exterior, parti para a criação de um centro de excelência em bem-estar animal único no Brasil, com foco no desenvolvimento de indicadores de bem-estar animal, produção de fenótipos robustos e resilientes, qualidade de vida para produtores e consumidores, e sustentabilidade também. Bem-estar animal passou a ser matéria obrigatória em nosso programa da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, e ganhamos o prêmio da Associação Veterinária Mundial na área de bem-estar animal,

“Os sistemas“ Integração Lavoura-Pecuária-Floresta ”(ILPF), além de proporcionar maior conforto térmico aos animais, comprovadamente neutralizam as emissões de gases de efeito estufa, o que possibilitou o lançamento do selo oficial Embrapa Carbono Neutro da Carne Brasileira”.

Rapidamente firmamos parcerias com outras instituições públicas e estabelecemos um programa de monitoramento do bem-estar animal que se tornaria uma referência internacional, a saber, a Plataforma Unificada para Atendimento a Acidentes com Animais (PURAA). O programa foi reconhecido com dois prêmios pela Polícia Militar de São Paulo, instituição que ajudou a criar a iniciativa, por sua inovação na solução de problemas recorrentes relacionados a acidentes rodoviários com cargas vivas e colisões com animais.

Essa forma inovadora de usar as rodovias para entender melhor questões de bem-estar animal, saúde animal, segurança alimentar e até sonegação de impostos, abriu caminho para o estabelecimento em São Paulo de uma rede que se tornou um modelo para o Brasil. A interação entre os diferentes órgãos de fiscalização passou a permitir que o transporte de cargas vivas em São Paulo fosse fiscalizado rotineiramente quanto ao bem-estar animal nas rodovias. A Polícia Militar, a Polícia Militar Rodoviária, a Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo e o Ministério da Agricultura são parceiros nas atividades do PURAA.

Atualmente, o Brasil está intensificando seu arcabouço legal para a proteção do bem-estar animal. A recente Instrução Normativa do MAPA 113/2020 estabelece boas práticas de manejo e bem-estar animal em granjas comerciais de suínos e coloca a suinocultura brasileira na vanguarda mundial, com orientações específicas sobre treinamentos e medidas para garantir o bem-estar animal. Esta Instrução Normativa foi elaborada com a contribuição da Associação Brasileira dos Produtores de Carne Suína, que atuou em estreita colaboração com o MAPA e trouxe os diversos públicos e interessados ​​para os debates na fase de elaboração do regulamento. A pecuária sempre esteve atenta a essas questões e encontrou apoio contínuo no MAPA.

A pecuária também tem se beneficiado de iniciativas da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para aferir as vantagens do sistema floresta-pastagem. Os dados mostram de forma inequívoca que a pecuária pode conviver em perfeita harmonia com a rica biodiversidade brasileira. Os sistemas Integrados Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), além de proporcionar maior conforto térmico aos animais, comprovadamente neutralizam as emissões de gases de efeito estufa, o que possibilitou o lançamento do selo oficial Embrapa Carbono Neutro da Carne Brasileira.

 “O fato é que o Brasil hoje, possivelmente como nenhum outro país, está perfeitamente qualificado, na produção pecuária, para cumprir as cinco liberdades do marco global de proteção ao bem-estar animal.”

As questões da biodiversidade fazem parte do dia a dia do Brasil e o país busca estratégias para projetá-las internacionalmente. Por exemplo, estão contemplados no Acordo Mercosul-União Européia e em iniciativas globais de mitigação das mudanças climáticas. No que diz respeito ao bem-estar animal, o Acordo Mercosul-União Europeia estabelece o diálogo e a troca de informações entre as partes. Na 88ª Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE), como reflexo de seus avanços, o Brasil obteve um aumento no número de estados reconhecidos como áreas livres de febre aftosa sem vacinação. A OIE foi muito clara em sua agenda em relação ao bem-estar animal e o Brasil está atento à sua responsabilidade nessa área.

O fato é que o Brasil hoje, possivelmente como nenhum outro país, está perfeitamente qualificado, na produção pecuária, para cumprir as cinco liberdades do marco global de proteção ao bem-estar animal.

A primeira liberdade garante que os animais não tenham fome ou sede e tenham acesso a água e comida suficiente para mantê-los saudáveis ​​e fortes. Somente condições climáticas extremas podem comprometer essa liberdade no Brasil, onde as pastagens são abundantes.

No que diz respeito à segunda liberdade, que garante que um animal está livre de angústia e goza de condições adequadas à sua espécie, inclusive em termos de abrigo e conforto, é certo que subsistem alguns desafios. Mas esses são desafios que certamente podemos superar, por exemplo, proporcionando ao gado acesso à sombra em sistemas floresta-pastagem. Quanto às aves e suínos para postura de ovos, mudanças nos sistemas de alojamento seriam necessárias, como praticamente em qualquer outro lugar do mundo.

A terceira liberdade garante que um animal viva uma vida livre de dor e ferimentos, e isso inclui um diagnóstico rápido e intervenções para aliviar a dor. No Brasil, embora o uso da imunocastração suína seja elevado, procedimentos cirúrgicos que ainda causam dor e desconforto mobilizam profissionais e produtores na busca de soluções. Quando se trata de diagnóstico de doenças, o Brasil conta com veterinários competentes que contam com o apoio de órgãos oficiais e privados de reconhecida excelência para atender às demandas de intervenções rápidas.

Poucos países têm acesso a ambientes como os disponíveis no Brasil para que os animais possam usufruir da quarta liberdade, que garante que o comportamento natural de uma espécie não seja perturbado. Os sistemas de pastagem florestal para a criação de ruminantes estão sendo desenvolvidos muito rapidamente, assim como os sistemas Voisin Rational Grazing. Grande parte da produção de gado no Brasil está sob o sistema de pastagem caipira. A citada Instrução Normativa MAPA 113/2020 prevê a eliminação das gaiolas de gestação para porcas. Nesse sentido, a avicultura por postura é a principal preocupação no Brasil e medidas estão sendo exploradas para possíveis transições para sistemas que garantam que as aves tenham acesso a ninhos, material adequado para bicadas e outros requisitos importantes para a espécie. Como resultado de demandas da sociedade civil brasileira,

“Tão importante quanto, a pecuária é fundamental para a segurança e inocuidade dos alimentos, com forte componente social no Brasil.”

No que diz respeito à quinta liberdade, que garante a ausência de medo e estresse, a pecuária no Brasil também se destaca pelo crescente interesse em capacitações e demais atividades de extensão lideradas por universidades e outras instituições. Os agricultores familiares, criadores de aves e suínos, na maioria das vezes, estão diretamente integrados à cadeia produtiva por meio da indústria da carne, que promove constantemente a formação nas áreas de bem-estar e saúde animal. As cadeias de gado de corte e leite têm progredido rapidamente em sua busca por um manejo de baixo estresse, de uma forma um pouco menos organizada do que as indústrias de suínos e aves. O transporte de animais tem regras específicas e o país está aprimorando suas fiscalizações. O abate de animais, sob fiscalização federal, estadual e municipal, segue legislação específica, e o respeito aos animais durante o manejo e atordoamento pré-abate é garantido por lei. O MAPA realiza cursos de capacitação em todo o Brasil para proporcionar à indústria da carne o acesso às mais modernas técnicas de proteção animal no transporte, manejo pré-abate e durante o abate.

Tão importante quanto, a produção pecuária é fundamental para a segurança e inocuidade dos alimentos, com forte componente social no Brasil. O Censo Agropecuário 2016-2017 mostra que 31% dos bovinos, 45,5% das aves, 51,4% dos suínos e 70,2% dos caprinos são produzidos em propriedades familiares, responsáveis ​​também por 64,2% da produção de leite. Esses dados reforçam a dimensão social da produção animal para o desenvolvimento sustentável.

Para concluir, uma observação final sobre o relacionamento do Brasil com a comunidade internacional como um todo. Este é um fator decisivo para garantir o devido reconhecimento aos stakeholders responsáveis ​​pelas boas práticas no domínio do bem-estar animal, sustentabilidade e qualidade de vida dos produtores. Parcerias mais diversificadas e aprofundadas com outros países, em prol de práticas sustentáveis ​​de bem-estar animal, também são muito bem-vindas, na medida em que oferecem oportunidades para que experiências positivas sejam devidamente reconhecidas e, consequentemente, divulgadas. Sempre no espírito de cooperação internacional, todos nós nos beneficiaríamos com a criação de um centro que reunisse pesquisadores de todo o mundo dedicados ao bem-estar animal. Campus Fernando Costa da USP, em Pirassununga,

Com base em minha experiência pessoal, acredito firmemente que, por sua rica história nessas questões e pela abertura ao mundo, o Brasil se destaca cada vez mais entre os principais atores na promoção do bem-estar animal e do desenvolvimento sustentável sob a égide de ONE WELFARE , UM PLANETA .

Confira outras mídias que divulgaram o artigo:

Portal da Embaixada do Brasil no Reino Unido – disponível em Inglês, Alemão, Espanhol e Português  

Jornal da USP