São Paulo apaga animais de sua história urbanística com imaginário focado em doenças

São Paulo apaga animais de sua história urbanística com imaginário focado em doenças

Estudo iconográfico investiga relações humano-animal para reivindicar reconhecimento da participação deles na construção urbana; pesquisa também discute o conceito de cidade multiespécie

Jornal da USP, 5/8/25

Texto de Jean Silva, Arte de Daniela Gonçalves

Buscando controlar epidemias, movimento consolidou a ideia de que certos animais são inimigos – Foto: Reprodução do artigo/Acervo do Arquivo Nacional – Rafael Bordallo Pinheiro

Em dissertação de mestrado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU) da USP, Carolina Simon defende como a negação da presença animal se disseminou no imaginário social com foco no impacto do combate às zoonoses. A pesquisadora analisa, em material iconográfico, o tratamento dispensado aos animais no contexto das transformações urbanas da cidade de São Paulo às práticas sanitárias na primeira metade do século 19 até os dias atuais. A partir dessa investigação, ela busca responder e promover o reconhecimento da vida animal no meio urbano por uma perspectiva mais consciente dessas interações.

A pesquisadora combinou um levantamento teórico-histórico com uma análise iconográfica de materiais de acervos, como o da Cinemateca Brasileira, da Fundação Biblioteca Nacional, do Instituto Moreira Salles (IMS), do Museu da Imagem e do Som (MIS), além de jornais e revistas dos acervos da Biblioteca de Saúde Pública da USP e do Instituto Pasteur de São Paulo (IPSP). Ela identificou uma ausência sistemática do papel dos animais (como mulas, cavalos, cães) na história urbana e na memória pública, e um imaginário urbano que associa os animais — sobretudo os “indesejáveis” (baratas, ratos, pombos) ou que se adaptam a ambientes urbanos — à ideia de contágio; ou seja, sujeira, doença e desordem.

Carolina Simon - Foto: Arquivo pessoal

Carolina Simon defende ser possível estabelecer uma convivência mais equilibrada, diferente de uma lógica histórica de dominação humana sobre as vidas animais. A concepção de uma comunidade multiespécie se apresenta como um desafio urbanístico. “As abordagens higienistas tiveram um impacto profundo no processo de modernização da cidade e afetaram significativamente as relações entre humanos e animais, muitas vezes de forma negativa, distanciando a visão sobre os animais no meio urbano”, explica.

Ela destaca, por exemplo, a contribuição dos cavalos e mulas ao abrirem caminhos, no início da urbanização, como invisibilizada e fundamental para posterior construção de ruas.

“Não apenas excluíram-se espécies consideradas incômodas ou perigosas. O distanciamento supostamente positivo teve efeito oposto, pois não controlamos adequadamente as zoonoses relacionadas aos animais” – Carolina Simon

O conceito de “besta”, resgatado de tradições filosóficas e literárias, mostrou-se um elemento estruturante na diferenciação simbólica entre humanos e não humanos, sustentando a exclusão animal em nome da civilização e da razão.

“A ruptura entre natureza e cultura se consolida no processo de modernização das cidades, especialmente quando há uma necessidade de controle maior. Nesse contexto, a imagem do animal como besta se fortalece, principalmente devido à associação com perigo e doenças”, detalha pesquisadora ao Jornal da USP.

Os ratos, por exemplo, associados à peste bubônica, tornaram-se símbolo duradouro de contaminação. Consolidou-se a ideia de que esses animais representam ameaça à saúde pública. Para ela, essa estigmatização revela não apenas uma resposta sanitária, mas uma construção simbólica que legitima a marginalização dos não-humanos no projeto urbano. Assim, conforme sua defesa, integrar os animais à história urbana é uma necessidade urgente diante das crises socioambientais e sanitárias, o que implica repensar o espaço urbano, suas normas e hierarquias.

Focados no combate à raiva, panfletos de animais domésticos transformam cães em ameaças - Foto: Reprodução do artigo / Acervo Instituto Butantan - Museu de Saúde Pública Emílio Ribas

Da história à iconografia

No eixo teórico, foram analisados conceitos-chave como a relação entre humanos e animais, a noção de contaminação e o discurso higienista, na figura da “besta”. Essa fundamentação teórica permitiu contextualizar historicamente as práticas de controle das zoonoses e suas implicações na exclusão dos animais do espaço urbano. A chamada era do saneamento, marcada por intervenções higienistas a partir do século 19, foi decisiva. Ao mesmo tempo em que buscava controlar epidemias, esse movimento consolidou a ideia de que certos animais são inimigos.

Segundo ela, trata-se não apenas de uma política de saúde pública, mas de um projeto de cidade que exclui o que não se encaixa no ideal de civilização e progresso. A perspectiva da pesquisadora foi voltada às ações higienistas. Ainda assim, reconhece o papel da fundação da União Internacional Protetora dos Animais (Uipa), em 1895, a partir da contrariedade às crueldades contra mulas e cavalos nas cidades da época como importante para o avanço dos direitos desses animais. Carolina destaca que a invisibilidade do material analisado não é acidental, mas resultado da visão que subordina e reduz os animais ao papel de ferramentas de trabalho. A análise iconográfica realizada revelou como essa exclusão também está refletida na memória visual da cidade.

Cavalos e outros animais de tração essenciais para posterior construção das ruas eram usualmente encontrados no cotidiano da antiga São Paulo - Foto: Reprodução do artigo / Acervo do Instituto Moreira Salles - Vincenzo Pastore

Por fotografias, charges, panfletos e documentos de saúde pública, a arquiteta observou como determinadas espécies são representadas de maneira estigmatizada. “As charges são significativas, pelo tom de crítica e tratativa, quanto aos inconvenientes que esses animais representavam”, explica. Nas imagens de campanhas de saúde pública, por exemplo, é comum ver pombos, baratas e ratos como inimigos da cidade. Ao trazer esse repertório visual à análise, ela mostra como o campo simbólico reforça a marginalização dos animais e legitima políticas de controle e eliminação.

Cidade multiespécie

O conceito de cidade multiespécie parte do reconhecimento de que o espaço urbano não é — e nunca foi — exclusivamente humano. Para Carolina Simon, pensar a cidade a partir de uma perspectiva de convivência entre humanos e animais não-humanos significa romper com a lógica histórica de dominação e exclusão dos animais, abrindo espaço para uma convivência que considere as múltiplas formas de vida presentes no ambiente urbano.

“Se continuarmos sem trazer esse debate para o campo da arquitetura e do urbanismo, fica praticamente impossível pensar em uma cidade que acolha e possa viver em harmonia com todas essas espécies”, afirma.

Essa convivência, segundo ela, não deve ser pensada de maneira ingênua ou apenas simbólica. A cidade multiespécie exige revisão de políticas públicas, reconfiguração de espaços e enfrentamento de tensões entre humanos e animais. Carolina alerta para a necessidade de compreender que o incômodo causado por espécies como capivaras ou pombos nas grandes cidades é, muitas vezes, consequência direta da ação humana.

“Se esse descontrole nos incomoda tanto, isso tudo é reflexo das nossas ações. Mexemos no espaço urbano de uma maneira que retira essas espécies de seus hábitats naturais”, observa.

O professor Vladimir Bartalini, professor na FAU e orientador da dissertação, explica que, embora um parque urbano não seja um ambiente totalmente natural, ele oferece condições favoráveis para o equilíbrio entre as espécies, graças à presença de água, vegetação e diversidade, contribuindo para a manutenção da biodiversidade urbana. “Aumentar o número de parques, arborização e áreas úmidas na cidade pode mudar a perspectiva sobre a convivência com a natureza”, destaca Bartalini.

“Embora possam se preocupar com a proliferação de certas espécies, é importante reconhecer oportunidades para o equilíbrio e a coexistência entre as espécies” – Vladimir Bartalini

Vladimir Bartalini - Foto: Reprodução / Arquivo Pessoal

Os pesquisadores propõem repensar o papel dos animais, não mais como intrusos, mas agentes que moldam o espaço e compartilham a cidade. Essa reconfiguração implica revisar os próprios fundamentos da cidade moderna. O professor acrescenta: “A visão ecológica é fundamental, mas não é suficiente. É preciso complementá-la com uma visão poética, que transforma o comum em algo novo e revelador. Ela nos permite ver e viver a cidade de uma maneira única e profunda, superando a visão meramente funcional e ecológica”.

A dissertação intitulada A relação humano-animal e o combate às zoonoses no imaginário urbano pode ser acessada clicando aqui.

Mais informações: carolinasimon@gmail.com, com Carolina Simon